sábado, 21 de fevereiro de 2009

conto "Um Serão Igual Aos Outros"

- Vá, fala; diz qualquer coisa! – volta a gritar cada vez mais furioso.


A minha cabeça está vazia. Já não consigo pensar. Tudo o que eu possa dizer só irá piorar as coisas.

Pior do que tudo, eu já não sei o que poderia dizer.

- É impossível falar contigo. Tu calas-te e pronto. Não dizes nada. Ficas só para aí com esse ar de superioridade.

Superioridade?! Sinto-me apenas como um insecto anestesiado.

- Eu não sei muito bem o que é que posso dizer… - respondo.

- Admite; admite que tens a culpa. Pelo menos uma vez na vida admite que tu é que tens a culpa.

A culpa de quê, meu Deus? Quanta dor, quanta vontade de mudar tantas coisas que tenho feito! Quantas vezes tenho magoado outras pessoas… mesmo os meus filhos… mesmo ele… Mas só me acusa do que não é nada.

- É incrível! Não és capaz de admitir.

- Mas admitir o quê?

- Que nada muda, nada acontece, só por causa de ti. Tu pensas pequeno, não és capaz de te mexer, de andar para a frente.

Eu não quero pensar pequeno nem grande. Somente a Tua vontade, Senhor.

- Eu só acho que talvez não seja a mudar de um sítio para o outro que os problemas se resolvem. Se calhar é preciso começar por mudar as coisas dentro de nós. - atrevo-me a dizer.

- Pois, tu só desconversas. E não és capaz de admitir!

Sinto a minha cabeça inchada. Estou tão cansada! Não me atrevo a dizer nada. Já nem sei o que poderia dizer. Ficar calada é igualmente mau.

Como eu gostava que fosse possível conversarmos! Há tanta coisa que eu preciso de mudar. Tanto problema real. Tão longe que eu ainda estou da Tua vontade. Quantas vezes eu sinto horror, sinto vergonha porque voltei a fazer o que não quero; voltei a reagir como Tu não queres.

Mas só sou acusada por isto; por tentar pensar com calma e sensatez; por buscar a Tua vontade; por me recusar a correr atrás do vento… e de ocas vaidades.

- E continuas sem dizer nada!

Senhor, quanto rancor! Quanto ódio!

E a terrível sensação de que seja o que for que eu faça (ou deixe de fazer) só poderá aumentar ainda mais esse rancor, essas constantes acusações.


Senhor, eu oro segundo a Tua vontade. Devolve-me o amor do meu marido. Só Tu podes fazer isso. Só Tu podes restaurar tudo o que está partido.


Cada dia é mais difícil. O ambiente está tão tenso, tão pesado! Estou tão cansada que é quase impossível não perder a paciência mesmo com as pequenas coisas. Constantemente.

Sinto o meu corpo gasto, cansado, triturado. A sensação de ter a mente presa num corpo que já não consegue.

Quem me dera poder parar. Tudo. Até voltar a ter capacidade para pensar.


Deus toca o meu coração. Traz à minha memória a Sua promessa: “Todo o que nEle crê, não será confundido.”

Senhor, a Tua Palavra é tremenda! Não é possível ter um encontro contigo e ficar igual ao que era antes.

A minha dor aumenta, mas Tu confirmas o Teu amor.

Os que crêem em Ti não serão confundidos. Eu creio em Ti, Senhor. Só Tu és uma rocha firme. Tudo o resto é pântano e cheiro a lodo.

Hoje mostraste-me que eu não preciso de me defender. Tu és o meu defensor (Salmo 28). Hoje, que eu estou mais uma vez a precisar…


- E ainda por cima, com esse teu ar, as pessoas pensam que tu é que és boazinha e que eu te ando a tratar mal. - vocifera.

Livra-me, Senhor, sê Tu o meu defensor, que eu nada posso, eu nada sei.

Cada vez mais me sinto “a praga”. Não existe nada além de rancor.

Já não sei nada. Será que estou a ficar louca? Será que sou realmente eu a culpada de tudo o que está a acontecer? Será que o que Deus me diz na Sua Palavra não passa de alucinação minha?


Sinto os dias passar tão depressa. A minha cabeça rodopia vertiginosamente. Tento raciocinar e quase não consigo. O que antes era rotina, agora é um esforço titânico.

Quando chega a noite só quero sentar-me e repousar a cabeça no vazio. Não pensar, não sentir; só ficar quieta.

- As coisas continuam na mesma, mas tu continuas a não admitir que a culpa é só tua.

Por favor, Senhor, hoje não. Hoje eu não estou com resistência para ouvir tudo isto, mais uma vez. Tu dizes na Tua Palavra, tantas vezes, “e eles clamaram e o Senhor lhes respondeu”.Eu clamo a Ti, Senhor. Neste momento eu clamo a Ti com todas as minhas forças… em silêncio. Eu estou tão cansada; a minha cabeça parece que vai estoirar. Livra-me, Senhor, por amor do Teu nome. Livra-me ou dá-me a capacidade para suportar.

Num ímpeto, ele levanta-se e dirige-se para o telefone. Tenta confirmar algo que, embora não tenha a ver comigo, só irá aumentar o seu furor contra mim.

Eu clamo a Ti, Senhor. Livra-me por amor do Teu nome.

A conversa ao telefone não está a correr como ele esperava. Parece que afinal talvez ele não tenha razão naquele assunto.

Desliga o telefone. Senta-se a olhar para a televisão. Imóvel. Aquilo que parecia uma sólida muralha à volta do seu ódio, tornou-se como um castelo de areia. O seu ódio contra mim perdeu a sua base mais recente, como um balão que se esvazia.

Louvado seja o Senhor!

Por um pouco, tudo se aquietou.

Louvado seja o Senhor. No meu coração eu só consigo repetir, sem cessar:

Louvado seja...



Este é um testemunho verídico escrito pouco depois da ocorrência desta cena. A desestruturação da capacidade de raciocínio que se sente na vítima, embora pareça artificial e rebuscada, retrata de maneira bastante realista a tempestade de pensamentos e sentimentos que a maioria das vítimas experimenta durante os momentos de agressão (quando ainda consegue raciocinar).