Há uma grande tendência para pensar que este é um tema do passado, de algumas zonas remotas da província ou de pessoas com baixo nível sócio-cultural. No entanto, as estatísticas apontam para uma realidade muito diferente. Segundo números divulgados há algum tempo pelos Médicos do Mundo, morrem em Portugal, em média, mais de cinco mulheres por mês, vítimas directas de violência doméstica. E isto refere-se apenas a violência física e não à violência psicológica que, em muitos casos, pode ser até mais grave. Eu não diria, então, que o problema é de pouca importância ou irrelevante, mas sim embaraçoso. É extremamente desagradável pensarmos que em muitos dos lares que conhecemos há violência. Ou, talvez ainda mais desconfortável, concluirmos que muitas das pessoas com quem nos relacionamos e que nos parecem simpáticas, respeitadoras e tolerantes, quando estão nas suas casas, ao abrigo de olhares alheios, agem de forma muito diferente. É cada vez maior o número de pessoas que procuram apoio, mas a maioria continua em silêncio. Por medo! Por vergonha!
Este tipo de situação tem consequências muito graves para as pessoas que a vivem, em particular para as crianças. Provocam distúrbios a nível emocional e mesmo físico; algumas doenças psicossomáticas podem ser causadas por situações prolongadas de stress muito intenso.
Para além disso, se não for resolvida, essa situação irá não só manter-se como, provavelmente, passar para a geração seguinte. Muitos dos filhos de agressores mais tarde acabam também por se tornar agressores para as suas famílias. Quando numa família há problemas comportamentais graves é muito alta a percentagem de descendentes que apresentam o mesmo tipo de comportamentos (ou que casam com alguém que acaba por ter esse mesmo comportamento), até ao longo de várias gerações.
Uma das razões que também leva as pessoas a não procurarem ajuda, é não acreditarem na possibilidade de mudança, pelo menos para melhor. Parece um risco demasiado grande (que o agressor descubra a “denúncia”) para algo que parece que é assim mesmo. A própria pessoa que tem esse comportamento normalmente também acredita e incentiva essa forma de pensar. “Eu sou mesmo assim. Não me consigo controlar. Quando perco a cabeça não tenho mão em mim.” Penso que, para começar, temos aqui um problema de linguagem. Eu não concordo com o uso do verbo “ser”; creio que a pessoa não é assim, mas age assim. É muito diferente. Também não concordo com o verbo “conseguir”; não se trata de não conseguir, mas sim de não querer ou, quando muito, de não saber agir de outra forma. Normalmente a pessoa até consegue controlar-se quando surge uma situação em que não quer mostrar essa sua faceta. A maioria das pessoas violentas, mesmo quando está no meio de um ataque de fúria, em que está supostamente “descontrolada”, consegue modificar quase instantaneamente essa atitude ao ouvir o simples toque da campainha ou do telefone. Quem convive com cenas de violência em casa provavelmente já viu o agressor parar de gritar e atender o telefone com um tom de voz cordial. E quantas vezes, no momento em que o telefone é desligado, a gritaria recomeça como se não tivesse sido interrompida! Isto é descontrolo?
No fundo, o descontrolo é apenas uma táctica. A maioria dos agressores que não usam violência física, mas sim psicológica (através de opressão, chantagem, manipulação, terror, etc.), são pessoas inteligentes que agem de forma a obterem o que querem (e que muitas vezes é apenas a imobilidade mental e psicológica das suas vítimas). Uma das características mais comuns é procurar confundir a sua vítima e mantê-la num estado de confusão mais ou menos permanente, convencendo-a de que a culpa das suas atitudes é dela. Em situações mais graves, o agressor pode mesmo chegar a acusar a sua vítima das atitudes que é ele próprio que tem. Por exemplo, um agressor que comete adultério pode acusar a esposa de ser ela a fazer isso. A situação pode ser tão grave e constante que a vítima pode chegar a acreditar que realmente faz aquilo de que o seu agressor a acusa. Na verdade, uma característica quase constante nas vítimas de agressão é a confusão, provocada pelos aspectos absurdos que a situação tem e pela pressão psicológica quase constante do agressor. Esta pressão é intencional e, em muitas situações, há mesmo a tentativa de que a vítima seja declarada mentalmente incapaz (por um médico ou psiquiatra).
Uma utilidade prática de manter o ambiente familiar com características de absurdo, é que se torna muito difícil para a vítima falar com outras pessoas acerca do que se está a passar. Se a vítima se atreve a falar do seu sofrimento com alguém, acaba quase sempre por sentir que a outra pessoa está a “dar o desconto”. E num ambiente cristão há ainda uma grande possibilidade de que as suas palavras sejam consideradas maledicência. Precisamos, no entanto, de ter muito cuidado para não confundirmos uma pessoa maldizente com uma vítima de abuso. Vale a pena pegarmos numa concordância bíblica e procurarmos ver o que Deus diz acerca dos oprimidos e da atitude que Ele espera de nós, como membros do Corpo de Cristo.
Outro aspecto que eu gostaria de focar é que, numa cena de agressão, há sempre dois lados. Um deles é o que agride; que não quer ou não sabe responder à situação de outro modo. O outro não é o que tem culpa, o que fez com que ele ficasse furioso mas que, na verdade, permitiu. Não quero também eu parecer demasiado dura ou insensível com aqueles que já são tão maltratados mas, tal como agredir nunca é a única resposta possível, “permitir” também não o é. Não estou a dizer que a vítima proíba o seu agressor de a maltratar. Provavelmente o resultado não seria muito bom. Mas ambas as atitudes (o que faz e o que permite) podem ser trabalhadas e modificadas.
Quando se pensa em trabalhar com situações de violência relaciona-se normalmente com apoio à vítima. No entanto, eu não creio que este deva ser o único alvo. Qualquer pessoa que tenha problemas com a ira pode aprender a lidar com ela de forma diferente; pode aprender a escolher, livre e conscientemente, qual é a atitude que quer ter em determinada situação, em vez de ser levado pelas suas emoções a agir de modo irracional e prejudicial para todos; até para si mesmo. Nem sempre são as vítimas quem procura apoio. Muitas pessoas que reconhecem que têm um problema (ira ou outro) procuram eles próprios aconselhamento. No entanto, qualquer das pessoas envolvidas pode (e deve) buscar auxílio. Para se começar um trabalho de aconselhamento, o importante não é ver quem precisa mais de mudar mas quem “está disposto” a empenhar-se na resolução do problema e melhoria do ambiente familiar.
Problemas do comportamento e das emoções que dirigem esses comportamentos não são novos, nem sequer recentes. E o aconselhamento bíblico também não. É tão antigo como o relacionamento do homem com Deus. No aconselhamento bíblico a pessoa é ensinada a identificar e resolver os problemas em vez de se adaptar a eles. É um trabalho de procura das raízes mais profundas de cada problema e da sua transformação. O alvo, seja qual for o tipo de problema, é sempre que o aconselhado se torne uma pessoa livre para escolher e responsável pelas opções que faz; que encontre a paz e o bem-estar interior que só se pode ter dependendo de um relacionamento profundo com Deus e não de quaisquer “esquemas”.
Uma pessoa dominada pelo seu meio ambiente ou pelas suas emoções não é livre nem feliz. Hoje em dia há uma busca enorme pela felicidade. Esse parece ser um dos bens que as pessoas mais desejam. Mas a nossa felicidade não pode depender das circunstâncias. Cabe-nos a nós não permitir que a nossa vida se desmorone de cada vez que as coisas se complicam. À semelhança do que acontece com os desportistas, as nossas provações podem ser usadas como uma forma de treino, de maturação e crescimento pessoal. Perante uma dificuldade, nós podemos optar por uma atitude derrotista e de auto piedade ou, pelo contrário, optar por crescer e mesmo florescer. Não fazer nada, já é uma escolha.
Uma vítima pode optar. Um agressor também. O aconselhamento bíblico trabalha tanto com um como com o outro, não num processo de condenação, de castigo, de descobrir de quem é a culpa; mas de ajudar cada pessoa a encontrar-se e assumir-se verdadeiramente como um ser humano, com os privilégios, capacidades e responsabilidades que isso implica.
In Lar Cristão, Abr a Jul 2008
sexta-feira, 16 de janeiro de 2009
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